A apuração de haveres na dissolução parcial de sociedades frente à jurisprudência recente

7 de agosto de 2023

Por Lucas de Freitas Silva, Hévila Pereira Alvarenga e Thiago Vieira de Almeida Prado

O vínculo entre os sócios é o cerne das relações empresariais, tendo em vista que a pessoa jurídica depende de relações sadias entre as pessoas físicas que a compõe para sua perenidade e correto funcionamento – anotada a exceção das sociedades unipessoais.

Já foi tratado em artigo pretérito[1] das hipóteses e do correto procedimento extrajudicial e judicial de retirada e exclusão de sócio a partir do momento que há a quebra do affectio societatis, motivo pelo qual não nos aprofundaremos no instituto da dissolução parcial, que, resumidamente, consiste na saída de um dos sócios do quadro social da sociedade sem que ocorra a extinção da pessoa jurídica, seja ela forçada, se por exclusão, ou natural, se por exercício do direito de retirada ou em razão de falecimento.

Enquanto a dissolução parcial não costuma ser, na maioria dos casos, a principal fonte de discórdia entre os sócios, não se pode falar o mesmo acerca da apuração de haveres, relacionada à avaliação do valor das quotas sociais do sócio retirante ou excluído.

O presente artigo visa demonstrar o método quantitativo utilizado pelo judiciário para calcular o crédito proporcional à participação social do sócio retirante ou excluído a ser pago no momento de sua saída da sociedade.

Vale ressaltar que, como regra geral, caso haja determinação específica sobre o método a ser utilizado para cálculo da apuração de haveres no documento constitutivo da sociedade, ou acordo de sócios, este deve ser aplicado em consonância com os princípios da autonomia da força obrigatória dos contratos e da autonomia da vontade das partes, em entendimento aos artigos 1031 do Código Civil[2] e 606 do Código de Processo Civil[3].

Porém, há muitos casos em que tais documentos não trazem o regramento pormenorizado da apuração de haveres, abrindo margem para discussões que, não havendo a conciliação entre os sócios, batem às portas do judiciário.

Não obstante a clareza do método de avaliação previsto na legislação, qual seja, o valor patrimonial da empresa, calculado em balanço de determinação especialmente levantado para esta finalidade, havia dissonância jurisprudencial acerca do tema até o início de 2021.

Em análise das decisões judiciais à época, aplicava-se, majoritariamente, em conjunto com o balanço de determinação, o método de fluxo de caixa descontado, em respeito ao – longevo – entendimento do STF no RE 89.464/SP[4] e, mais recente, do STJ no REsp 1.335.619/SP[5].

Também se fazia presente, apesar de minoritária, a corrente que defendia que a aplicação do método acima descrito era incerto quanto a concretização dos resultados futuros, podendo gerar consequências prejudiciais à continuidade da sociedade e aos sócios remanescentes.

Contudo, em sentido contrário à jurisprudência que, até então, vinha se consolidando nos tribunais, em abril de 2021, o STJ julgou o REsp 1.877.331/SP[6], decidindo a 3ª Turma que a “metodologia do fluxo de caixa descontado, associada à aferição do valor econômico da sociedade, utilizada comumente como ferramenta de gestão para a tomada de decisões acerca de novos investimentos e negociações, por comportar relevante grau de incerteza e prognose, sem total fidelidade aos valores reais dos ativos, não é aconselhável na apuração de haveres do sócio dissidente“.

O entendimento acima narrado toma como base o fato de que a metodologia do fluxo de caixa descontado leva em consideração, na valoração da sociedade, os rendimentos que esta pode gerar no futuro, por meio de uma projeção de resultados trazidos a valor presente, por uma taxa de desconto, gerando incertezas na apuração de haveres, que deve ser pautada na valoração real e atual dos ativos.

Esse entendimento é ainda mais pungente no caso da dissolução parcial, tendo em vista que, caso aplicada a metodologia do fluxo de caixa descontado, o sócio retirante estaria recebendo rendimentos futuros de maneira antecipada, calculado sobre expectativas e provisões que não necessariamente irão se consolidar.

Assim, em oposição ao método acima mencionado, o REsp 1.877.331/SP consolidou o entendimento, já previsto na legislação, de que, para a apuração de haveres na dissolução parcial de sociedades, afere-se apenas o valor patrimonial, no momento da saída do sócio, a ser realizado por meio do balanço de determinação por perito judicial.

O entendimento consolidado pelo REsp supracitado, além de estar de acordo com a legislação, vai ao encontro da doutrina atual, criando um entendimento uníssono acerca do tema, conforme reconhecido pelos desembargadores no próprio teor do Recurso Especial: “[…] na omissão do contrato social quanto ao critério de apuração de haveres no caso de dissolução parcial de sociedade, o valor da quota do sócio retirante deve ser avaliado pelo critério patrimonial mediante balanço de determinação. O legislador, ao eleger o balanço de determinação como forma adequada para a apuração de haveres, excluiu a possibilidade de aplicação conjunta da metodologia do fluxo de caixa descontado. […] A doutrina especializada, produzida já sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, entende que o critério legal (patrimonial) é o mais acertado e está mais afinado com o princípio da preservação da empresa, ao passo que o econômico (do qual deflui a metodologia do fluxo de caixa descontado), além de inadequado para o contexto da apuração de haveres, pode ensejar consequências perniciosas […]”.

Em importante digressão, fica claro, após a análise do entendimento recente quanto ao tema, a relevância para os sócios e para a preservação da sociedade de um documento constitutivo com regras expressas e claras acerca da metodologia utilizada para a apuração de haveres, tanto nos casos de dissolução total da empresa, quanto nos casos de dissolução parcial, buscando afastar eventual litígio.

Em que pese a regra acima descrita, esta não é absoluta, havendo a possibilidade, ainda que remota, de o judiciário admitir critérios valorativos distintos daqueles presentes nos atos constitutivos ou até mesmo dos critérios legais, caso haja o entendimento de que estes sejam muito destoantes da realidade empresarial do caso específico.

Assim é o entendimento doutrinário do próprio Desembargador Azuma Nishi que, em sua obra “Apuração de Haveres – Novos Paradigmas na Ordem Jurídica”, cita como exemplo: “Se tomarmos por base negócios como a Uber, Airbnb, Mercado Livre ou Google, que muitas vezes apresentam patrimônio líquido e resultados negativos, quase sem ativos fixos em seu patrimônio, o valor patrimonial, ainda que real ou a valores de mercado ou de saída, certamente não representará o valor dos respectivos negócios, sendo imperativo considerar, na avaliação de tais empresas, o aviamento e outros elementos intangíveis, sendo plenamente justificável a avaliação destas empresas baseada no valor econômico […][7]”.

Tal entendimento apenas corrobora a importância da atuação profissional consultiva societária na elaboração do Contrato Social, documento que deve ser moldado à realidade fática da empresa, visando a criação de um regramento que faça sentido ante a realidade societária, como também a evasão de discussão judicial sobre tema, garantindo, assim, que seja assegurada a vontade dos sócios no momento da dissolução parcial da sociedade.


[1] TOYOSHIMA, L.; ALVARENGA, H.; PRADO, T.; Das hipóteses e procedimentos de retirada e exclusão de sócio nas modalidades extrajudicial e judicial. Bettamio, Vivone, Pace e Lucena Advogados Associados, 2023. Disponível em: <https://bvp.adv.br/retirada-exclusao-socio/>. Acesso em: 30/05/2023.

[2] Art. 1031, CC – Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.

[3] Art. 606 – CPC – Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.

[4] STF. Recurso Extraordinário 89.464/SP. 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Relator: Ministro Décio Miranda. Publicado em: 04.05.1979.

[5] STJ. Recurso Especial 1.335.619/SP. 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relatora: Ministra Nancy  Andrighi. Publicado em: 27.03.2015.

[6] STJ. Recurso Especial 1.877.331/SP. 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Publicado em: 13.04.2021.

[7] NISHI, Eduardo Azuma. Apuração de Haveres – Novos Paradigmas na Ordem Jurídica. SP: Quartier Latin, 2022. P. 170.