Por Renan Marques Peixoto Uchoa e Victor Chinelato
O Código Tributário Nacional assegura aos contribuintes detentores de créditos relativos a tributos recolhidos indevidamente ou a maior o direito de pleitear judicialmente a restituição. Havendo êxito na medida judicial, a restituição dos créditos pode ocorrer por meio de precatório (art. 165 a 168 do CTN), ou, compensação com débitos de tributos vincendos, nas condições estabelecidas em lei (art. 170, do CTN).
No âmbito Federal, as compensações de créditos reconhecidos judicialmente por decisão transitada em julgado são reguladas por meio do art. 74, e §§, da Lei n.º 9.430/1996 e da IN/RFB n.º 2.055 de 2021 e devem ser objeto de prévia habilitação perante a Receita Federal do Brasil. O procedimento de habilitação visa à verificação de requisitos necessários para dar início às compensações tributária, via sistema PER/DCOMP.
A MP n.º 1.202/2023, recentemente editada, acrescentou o inciso “x” ao § 3º do art. 74 da Lei n.º 9.430/96, bem como incluiu o art. 74-A, para limitar o valor mensal das compensaçõese considerar como “não declaradas” as compensações que não observam tal limitação, sob a justificativa de conferir previsibilidade e viabilizar o cálculo do impacto das compensações nas receitas do governo.
Por seu turno, o Ministério da Fazenda – MF, por delegação da própria medida provisória, publicou, em 05/01/2024, a Portaria Normativa – PN n.º 14/2024, fixando os respectivos limites para a compensação. Foram estabelecidas seis faixas, que vão desde a compensação no prazo mínimo de 12 meses (para créditos de R$ 10.000.000,00 milhões até R$ 99.999.999), até o prazo máximo de 60 meses (para créditos acima de R$ 500.000.000,00).
Desde a edição da limitação de que trata este artigo, os contribuintes, descontentes, passaram a ajuizar medidas aduzindo inconstitucionalidades e ilegalidades.
De fato, o art. 170, do Código Tributário Nacional, prevê que a lei deve estabelecer condições e garantias para a compensação tributária. Isso, entretanto, não significa que a lei dê espaço para a União limitar o valor do crédito que poderá ser compensado.
A previsão de um limite mensal para utilização dos créditos em compensações acaba por desconfigurar a natureza jurídica e a finalidade do instituto, que visa justamente extinguir obrigações contrapostas mediante o encontro de contas entre credores e devedores recíprocos. Não podemos chamar de compensação o encontro de contas assíncrono e descompassado onde o fisco prossegue na cobrança dos tributos, mas impede o livre pagamento destes pelo contribuinte com a utilização de seus créditos.
Nesse sentido foi a conclusão do STJ no julgamento dos Embargos de Divergência 189.052/SP, em que sedimentou o entendimento de que o direito à compensação decorrente da declaração de inconstitucionalidade de tributo não se submete a limitações quantitativas, sendo necessária a restituição integral dos valores recolhidos indevidamente.
Ainda que se considere que a limitação da MP seja uma condição para a compensação, ela não poderia ser imposta por ato infralegal, tal como ocorreu, tendo ocorrido clara violação do princípio da legalidade. Como visto, as limitações quantitativas foram dispostas em Portaria do Ministério da Fazenda, e não em lei.
Ademais, vale lembrar que as medidas provisórias devem ser instituídas apenas em caso de urgência e relevância[1], requisitos que não estão presentes na pretensão do governo de resguardar a arrecadação tributária, o que enseja questionamentos em torno de sua constitucionalidade, à luz do entendimento do STF[2].
Não fosse o bastante, também é possível argumentar que a MP viola as coisas julgadas de reconhecimento de créditos. Se as decisões judiciais definitivas asseguram o direito ao crédito e à compensação[3], elas são imutáveis, de forma que limitar esse direito viola princípios básicos, inclusive o da segurança jurídica.
A propósito, consoante a jurisprudência do STJ[4], inclusive sedimentada por meio do Tema Repetitivo n.º 345/STJ[5], a regra a ser aplicada à compensação tributária é a vigente no momento do ajuizamento da ação, o que corrobora a inaplicabilidade da limitação para compensações de créditos decorrentes de decisões transitadas em julgado.
A possibilidade de violação da coisa julgada e de situações consolidadas, inclusive, foi evidenciada na orientação elaborada pela Receita Federal do Brasil sobre os limites para a compensação com créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado[6]. Confira-se:
2. A limitação é aplicável aos créditos que foram habilitados antes da alteração legislativa?
Sim, a limitação alcança todas as declarações de compensação transmitidas a partir de 5 de janeiro de 2024, data da publicação da Portaria Normativa MF nº 14/2024.
3. A limitação é aplicável aos créditos que estão em fase de utilização, ou seja, que já foram utilizados parcialmente?
Sim, a limitação alcança todas as declarações de compensação transmitidas a partir de 5 de janeiro de 2024, data da publicação da Portaria Normativa MF nº 14/2024.
Vale dizer, ainda, que a MP também afronta o direito de propriedade, protegido pelo art. 5º, inciso XXII, da CF, pois impede, indevidamente, o pleno exercício do direito de recebimento de créditos de propriedade do contribuinte da forma mais célere e menos onerosa, para a efetiva recomposição do seu patrimônio, em virtude da sua limitação no tempo.
Além disso, afigura-se abuso do Poder Público e violação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade quando a União deixa indevidamente de devolver os créditos do contribuinte e, concomitantemente, exija o pagamento do tributo em espécie. Há, por vias transversas, verdadeiro empréstimo compulsório, que somente pode ser instituído por Lei Complementar e em situações excepcionalíssimas, a teor do art. 148, da CF, residindo também neste ponto a inconstitucionalidade.
Não se pode, ainda, deixar de observar que a limitação das compensações apenas para valores superiores a 10 milhões de reais ofende a isonomia tributária prevista no art. 150, II, da Constituição Federal, pois institui tratamento desigual para contribuintes que se encontram em situação equivalente, ou seja, que são credores de tributos recolhidos a maior e tem direito à repetição, inclusive via compensação. Os contribuintes que detêm grandes valores de créditos tributários a serem compensados naturalmente suportam uma carga tributária mais elevada, o que confirma não haver justificativa para a diferenciação feita pela MP.
São esses os relevantes motivos que estão levando os contribuintes a ingressarem com medidas judiciais para afastarem a recente limitação ao direito de compensação de créditos reconhecidos por decisões judiciais transitadas em julgado.
[1] Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
[2] STF, Tribunal Pleno, Relatora Ministra Carmen Lúcia, ADI 4717, Publicado em 15/02/2019
[3] Nesse aspecto, por analogia, importante relembrar que o e. STF no julgamento da ADI 7.064, reconheceu a inconstitucionalidade das Emendas Constitucionais 113/2021 e 114/2021 que postergaram o pagamento de precatórios.
[4] STJ, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, REsp 439.834/SP, DJ 24/04/2006, p. 384; STJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, AgRg nos EDcl no REsp 699.890/PR, DJ 13/03/2006, p. 206; e STJ, 1ª Seção, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, EREsp 488.992/MG, DJ 07/06/2004, p. 156.
[5] “a lei que regula a compensação tributária é a vigente à data do encontro de contas entre os recíprocos débito e crédito da Fazenda e do contribuinte”.
[6]https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/receita-federal-divulga-perguntas-e-respostas-sobre-os-limites-para-utilizacao-de-creditos-decorrentes-de-decisao-judicial-transitada-em-julgado