Regulamentação da IA no Brasil: o que esperar do marco legal em análise na Câmara

9 de abril de 2025

Por Míriam Aparecida Cardoso Ferreira, Gabriel Pereira Guércio e Fernando Viscki Gonçalves

Há fortes expectativas com relação à votação do PL 2.338/2023, que tramita para a edição de um marco legal ao “desenvolvimento, fomento e uso ético e responsável” de sistemas baseados em inteligência artificial (“IA”) em solo nacional. A expectativa é de que a votação aconteça ainda no primeiro semestre de 2025.

Desde novembro de 2022, com o lançamento da ferramenta estilo Chatbot desenvolvida pela OpenAI, o ChatGPT, houve um boom de novas tecnologias e estruturas baseadas inteiramente em IA, na tentativa das grandes indústrias de inserção neste mercado. Em pouco mais de um ano e meio, são ínfimas as áreas que não sofreram impactos significativos dos sistemas GPT (Generative Pre-trained Transformer) e das tantas outras ferramentas que surgiram ou se aperfeiçoaram desde então.

Tendo em vista o alcance da IA, cada vez mais enraizada no desenvolvimento produtivo, a sociedade passa por um rápido processo de adaptação. As discussões se debruçam sobre a ética no uso da tecnologia, com enfoque em direito autoral, equilíbrio concorrencial, privacidade, proteção de dados, vieses discriminatórios e as influências sociais e econômicas das ferramentas.

Neste sentido, o debate sobre a regulamentação da IA caminha rapidamente no Brasil, tendo em vista a maturidade já atingida na Europa e nos Estados Unidos. O texto do PL 2.338/2023 inclui proposições inspiradas tanto no AI Act da União Europeia, aprovada em 13 de março de 2024, como na Executive Order on Artificial Intelligence norte-americana, editada em 30 de outubro de 2023.

Dada à complexidade do tema, foram realizadas novas audiências públicas para a discussão do tema, que contaram com a participação de senadores, professores voltados à área de Direito e Tecnologia, representantes de associações e órgãos de classe e outros especialistas no tema.

A versão original do projeto recebeu emendas e manifestações, inclusive da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e do Ministério Público Federal. Como resultado, o texto final foi recepcionado pela Câmara dos Deputados em 17 de março de 2025. Para os fins desta análise, será considerado o atual estado de tramitação.

Para efeito de classificação e entendimento da proposta, podemos definir a regulamentação como voltada a duas categorias de inteligência artificial: de um lado, o Sistema de IA de Propósito Geral (SIAPG), e, de outro, a IA Generativa.

A Inteligência Artificial de Propósito Geral (IA tradicional) é caracterizada como um conceito amplo, basilar, apto à realização de tarefas específicas, predefinidas e aplicadas em um determinado contexto. A IA Generativa, por outro lado, pode ser definida como aquela capaz de criar ou modificar conteúdos como textos, imagens, vídeos e músicas, além de reproduzir, com bastante precisão, competências humanas, como o raciocínio lógico e comparativo, apresentando respostas complexas a temas de forma detalhada, além da capacidade de gerir sistemas e informações em grande escala.

O PL, neste sentido, abrange ambas as possibilidades, sendo direcionado às ferramentas que são caracterizadas como Sistemas de Inteligência Artificial (IA), que são sistemas baseados em máquinas que produzam resultados através de um conjunto de dados, podendo inferir previsões, conteúdos, recomendações ou decisões que interfiram no ambiente físico, virtual ou real.

É importante frisar que a norma afetará sobremaneira o uso para fins econômicos, não abarcando uso particular sem intenção de lucro, ou atividade de pesquisa, investigação e desenvolvimento de sistemas, aplicações ou modelos de IA. Para estes casos, é sempre salutar recordar, ainda haverá a necessidade de observância da regulamentação geral do PL e as demais legislações aplicáveis sobre tais atividades, como os princípios e garantias constitucionais, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei Geral de Proteção de Dados etc.

O art. 2º do PL elenca uma série de princípios para a utilização e desenvolvimento da IA, em 20 incisos, ressaltando a centralidade da pessoa humana, a proteção dos princípios democráticos e dos direitos impactados, bem como da educação e da integridade das informações.

Dentre os escopos abordados pela proposta normativa, destacam-se o fomento ao desenvolvimento e uso da IA no Brasil, a classificação de riscos da tecnologia, bem como uma série de obrigações aos desenvolvedores e operadores de sistemas de IA.

A proposta normativa brasileira prevê a regulação estatal, mediante regras específicas para a utilização dos sistemas de IA, além da autorregulação por entidades do setor para empresas que trabalham com tecnologias baseadas em IA. O objetivo é promover um controle relativamente pulverizado, com enfoque em atuação multissetorial, que se materializará na criação do Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA).

De acordo com o PL, o SIA será composto pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), por autoridades setoriais, pelo Conselho Permanente de Cooperação Regulatória de Inteligência Artificial (CRIA) e pelo Comitê de Especialistas e Cientistas de Inteligência Artificial (CECIA). Além disso, eventuais controvérsias internas no âmbito do SIA serão dirimidas pela Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal.

Ademais, dada a competência sancionatória, incidentes envolvendo IA poderão ser julgados em processos administrativos e publicizados. Entre os mecanismos de regulação do desenvolvimento, encontram-se: a aplicação de sanções pela autoridade competente, previstas em graus a depender da gravidade da infração, e a reincidência (agravantes); bem como a adoção de medidas preventivas e a cooperação durante o procedimento administrativo (atenuantes). Algumas das possíveis penalidades são, conforme o artigo 50:

  • Advertência;
  • Multa de até R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração ou, no caso de pessoa jurídica de direito privado, de até 2% (dois por cento) de seu faturamento;
  • Publicização da infração;
  • Proibição ou restrição para participar de regime de sandbox regulatório por até 5 (cinco) anos;
  • A suspensão parcial ou total, temporária ou definitiva do desenvolvimento, fornecimento ou operação de IA em suas atividades; e
  • A proibição de uso de certas bases de dados.

Do ponto de vista do uso empresarial, o aspecto regulatório possivelmente mais importante consta na Seção II do Capítulo X, que trata da proteção ao trabalho e aos trabalhadores. Isso porque o potencial de a IA substituir a mão de obra humana em uma parcela significativa das atividades pode acarretar demissões em massa e o aumento do desemprego.

Assim, com o artigo 58 e seus incisos, o legislador busca instituir objetivos para o SIA e o CRIA na preservação do emprego e aumento dos impactos positivos aos trabalhadores, como a melhoria da saúde e segurança do local de trabalho.

Nesta toada, para os agentes privados, os efeitos do Marco Legal da IA serão abrangentes e os resultados de uma regulamentação extensiva ainda são incertos. A regulação, por um lado, mostra-se relevante para garantir parâmetros éticos no desenvolvimento e utilização da tecnologia, especialmente quanto à efetividade na proteção de dados pessoais, coibição de vieses discriminatórios, proteção ao trabalho e transparência quanto aos métodos utilizados neste processo.

Por outro, o PL apresenta certas condições abstratas que podem influenciar diretamente no desenvolvimento da tecnologia no país e no impacto dos órgãos regulatórios na eficiência deste mercado.

Como ponto positivo da proposta, abstrai-se do artigo 67 a recomendação de que as autoridades setoriais deverão estabelecer condições diferenciadas para os sistemas de IA oferecidos por microempresas, empresas de pequeno porte e startups, o que identifica a preocupação do legislador em proporcionar um cenário mais equitativo para atividades de menor impacto quando comparadas às desenvolvidas por big techs do mercado.

É certo que alguma regulamentação se faz necessária para reforçar critérios éticos e determinados e alcançar um grau razoável de segurança coletiva. Nada obstante, tanto o projeto inicial quanto a proposta substitutiva possuem caráter extenso e tópicos complexos, que demandariam medidas direcionadas e de maior profundidade, além de não considerarem a imprevisibilidade da evolução da IA.

Neste sentido, empresas do setor mostram-se apreensivas com a possível burocratização e imposição de maior ônus para suas atividades. A divisão sobre a matéria é latente, refletida na votação pública exposta no E-Cidadania, do Senado Federal, que denota frações quase equivalentes entre votos de aprovação e reprovação.

A imprecisão com relação a certos termos técnicos que ainda demandam aprimoramento para evitar interpretações errôneas é um dos grandes focos de preocupação, pois, contrariamente à maior pretensão do projeto, podem aumentar, e não reduzir, a insegurança jurídica na utilização da IA.

Por fim, muito embora a normativa ainda não tenha sido aprovada, é válido ressaltar que medidas de adequação e prevenção já podem ser adotadas desde já pelas empresas que se utilizam da tecnologia, sobretudo por já existirem parâmetros internacionais, que devem refletir o resultado da regulamentação brasileira. Além das disposições norte-americana e europeia, também servem de parâmetro a resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a IA e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre o tema.

Estar atento à evolução do Projeto é fundamental para acompanhar o desenvolvimento da IA no Brasil, sobretudo considerando as vantagens que o uso desta tecnologia pode proporcionar nas estruturas empresariais e no processo produtivo.

Nós do BVP acompanharemos de perto a votação e qualquer alteração que sobrevier ao Projeto. Com o novo marco regulatório despontando em horizonte próximo, nossas equipes podem auxiliar a sua empresa com as medidas de adequação e prevenção para a implementação de sistemas de IA.