Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), com a segurança de direitos fundamentais, individuais e sociais, o Estado brasileiro ficou obrigado a assegurar proteção ao meio ambiente, bem-estar social e o crescimento econômico, dentre outros direitos e obrigações. Com limitações em sua atuação, devido a questões burocráticas, orçamentárias e as dimensões continentais de nosso país, o terceiro setor surgiu como forma de viabilizar políticas públicas a uma parcela da sociedade que não foi alcançada pelo Estado.
O terceiro setor é formado por organizações não governamentais e sem fins lucrativos, como associações, fundações e ONGs, em diversos setores, que visam atender a necessidades sociais não atendidas, insuficientemente atendidas ou negligenciadas pelo setor público, e ajudam a reduzir desigualdades e fortalecem a democracia por meio do engajamento cidadão, seja por meio de voluntariado ou de doações.
Em termos econômicos, o terceiro setor movimenta consideráveis recursos financeiros mediante doações, parcerias público-privadas, e incentivos fiscais. Esse financiamento é vital para garantir a continuidade de projetos essenciais, como programas de saúde, educação e assistência a populações vulneráveis. A atuação desse setor se reflete diretamente no avanço de políticas públicas mais inclusivas e na ampliação do bem-estar coletivo.
A partir da constatação de sua relevância, a reforma tributária precisou considerar as especificidades do terceiro setor, garantindo que as organizações sociais possam continuar suas atividades com maior eficiência, reduzindo a carga burocrática e mantendo os benefícios fiscais que sustentam suas operações essenciais.
Contextualização da Reforma Tributária
As constantes mudanças na legislação tributária brasileira geram um cenário desafiador tanto para empresas quanto para cidadãos, devido ao seu grande volume de normas tributárias sendo criadas e alteradas frequentemente, dificultando o acompanhamento, compreensão, interpretação e cumprimento de todas as obrigações fiscais. Esse cenário instável aumenta a insegurança jurídica, reduz os investimentos externos no país, e gera uma redução no crescimento da economia interna.
Atualmente, as empresas brasileiras dispendem muito investimento em tempo, equipe especializada, consultorias e softwares para atender às exigências fiscais, o que reflete o aumento no custo das operações e a menor competitividade em relação a empresas internacionais.
Do outro lado, a fiscalização também sofre o impacto diante da complexidade dos tributos, tanto na diversidade de bases de cálculos, alíquotas, obrigações acessórias, quanto em relação a falta de transparência, sonegações e evasões fiscais.
Consolidada pela Emenda Constitucional (EC) 132/23 e pela Lei Complementar (LC) 214/25, a reforma tributária se fez imprescindível para simplificar o sistema fiscal, reduzir a burocracia, aumentar a transparência e melhorar a eficiência da arrecadação.
A EC 132/23 estabeleceu as bases estruturais da reforma, extinguindo tributos como ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI[i], [1]e criando o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência mista (estadual e municipal), e a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal. Além disso, introduziu o Imposto Seletivo (IS), de caráter extrafiscal, voltado para produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.
Para garantir uma transição equilibrada, a emenda também previu um período de adaptação progressiva entre 2026 e 2033 e instituiu o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), destinado a minimizar perdas de arrecadação dos entes federativos.
A LC 214/25 foi editada para a criação de três novos impostos: IBS, CBS e o Imposto Seletivo (IS), e com o objetivo de simplificar o sistema tributário, o IBS e a CBS incidirão sobre quase todas as operações com bens e serviços, enquanto o IS será aplicado a produtos que fazem mal à saúde ou ao meio ambiente.
Não se pode deixar de mencionar o PL 108/2024, tão importante quanto a LC 214/25 para a reforma tributária, o qual propõe a criação do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS), estabelece normas gerenciar e administrar esse novo imposto, que promove a gestão compartilhada entre Estados e Municípios, e regulará todo o processo administrativo para resolução de conflitos relativos ao IBS, como o dinheiro arrecadado será distribuído entre os Estados e Municípios, e como serão tratados os saldos de créditos do ICMS durante a transição para o novo imposto. Além disso, o projeto estabelece novas regras para o ITCMD.
O novo modelo tributário busca reduzir distorções e garantir que apenas as entidades genuinamente voltadas ao interesse público sejam corretamente beneficiadas.
Desafios Tributários anteriores a reforma tributária para o Terceiro Setor
O terceiro setor no Brasil enfrenta desafios tributários significativos que impactam sua sustentabilidade e eficiência. Destacam-se os seguintes pontos:
- Imunidades e isenções: A CF/88, em seu artigo 150, inciso VI, alínea ‘c’, concede imunidade tributária dos impostos sobre a renda, patrimônio e serviços a instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos, desde que atendam aos requisitos legais. Do mesmo modo, o art. 195, § 7º da CF/88, regulamentado atualmente pela LC nº 187/2021, confere às entidades beneficentes de assistência social imunidade das contribuições para a seguridade social. No entanto, a interpretação e aplicação da imunidade tributária são complexas, exigindo das organizações rigor no cumprimento de obrigações acessórias e critérios específicos para sua manutenção. Ademais, não há uniformidade na interpretação das normas entre os entes federativos, o que gera mais insegurança jurídica e desafios operacionais para essas entidades;
- Falta de clareza ao longo dos processos de imunidade: Grandes desafios relacionados reconhecimento da imunidade para entidades sem fins lucrativos, especialmente a falta de transparência nos processos e as dificuldades na comprovação de sua finalidade social.
- Obrigações Acessórias e Burocracia: Apesar de a imunidade ser constitucionalmente assegurada, as organizações do terceiro setor, especialmente aquelas sujeitas ao regramento do CEBAS, estão sujeitas a diversas obrigações contábeis e tributárias, incluindo declarações fiscais e previdenciárias. A complexidade e o volume dessas obrigações exigem investimentos em estrutura administrativa e jurídica para garantia da conformidade tributária;
- Regularidade Fiscal e Parcerias com o Poder Público: A Lei nº 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, estabelece a necessidade de regularidade fiscal, previdenciária e trabalhista para a celebração de parcerias com a administração pública. Entretanto, a obtenção e manutenção dessas certidões podem ser desafiadoras devido à complexidade do sistema tributário e às particularidades regionais, limitando o acesso a recursos públicos;
- Riscos de Autuações e Penalidades: A falta de clareza e a complexidade das normas tributárias aumentam o risco de autuações fiscais e aplicação de penalidades às organizações do terceiro setor. Interpretações divergentes entre as entidades e os órgãos fiscalizadores podem resultar em multas e cobranças indevidas, afetando a credibilidade e a sustentabilidade financeira dessas instituições.
Diante desse cenário, a reforma tributária se apresenta como uma oportunidade para a simplificação do regime aplicável às entidades do terceiro setor, garantindo maior segurança jurídica, transparência e previsibilidade. A harmonização das normas, a redução da burocracia e a uniformização dos critérios são medidas essenciais para fortalecer essas instituições e permitir que cumpram seu papel social de forma mais eficaz e segura.
Alterações Relevantes para as Entidades Beneficentes de Assistência Social.
Para o alívio do terceiro setor, a imunidade tributária está mantida conforme o artigo 150 da CF/88 e veda os entes de cobrar impostos de fundações, instituições de educação, assistência social sem fins lucrativos, e outros. Já em relação aos “templos de qualquer culto”, a imunidade foi ampliada para incluir as entidades religiosas e suas organizações assistenciais e beneficentes.
As entidades do terceiro setor, especialmente aquelas sujeitas ao cumprimento da LC nº 187/2021, precisam estar atentas ao novo regramento em vigor, a fim de que a implementação da reforma ocorra ao longo do período de transição, contudo, sem prejudicar o cumprimento das normas que regulam a obtenção e manutenção de suas certificações, especialmente o CEBAS.
Dentre as principais inovações, destacam-se:
Não aplicação das disposições contidas no art. 195, § 7º da CF/88 ao IBS e à CBS
A norma garante que as instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos são imunes ao IBS e à CBS, desde que cumpram, de forma cumulativa, os requisitos do art.14 do Código Tributário Nacional, em observância às imunidades previstas no art. 150, VI, “c”, § 4º da Constituição Federal, não se aplicando ao IBS e à CBS o disposto no art. 195, § 7º.
Limitação ao aproveitamento de créditos ao longo da cadeia nas vendas realizadas a entidades imunes
Em que pese um dos objetivos da reforma seja a não cumulatividade plena, a impossibilidade de aproveitamento de crédito nas vendas realizadas a entidades imunes pode gerar impactos negativos e prejudicar essas entidades, especialmente quando estiverem no meio da cadeia produtiva.

Insegurança jurídica quanto à imunidade na aquisição de bens materiais, imateriais e serviços por entidades imunes
O art. 9º, § 4º da LC 214/2025 traz insegurança jurídica às entidades imunes ao dispor que as imunidades das entidades listadas nos incisos I a III do caput do art. 9º da aludida lei complementar não se aplicam às suas aquisições de bens materiais e imateriais, inclusive direitos, e serviços. Segundo a jurisprudência[2] sobre a matéria, a imunidade tributária subjetiva aplica-se a seus beneficiários na posição de contribuinte de direito, mas não na de simples contribuinte de fato, sendo irrelevante para a verificação da existência do permissivo constitucional a repercussão econômica do tributo envolvido.
Segundo a legislação em vigor e precedentes, o contribuinte de direito é quem recolhe tributos como o ICMS aos cofres públicos – geralmente a empresa que vende um produto. Já o contribuinte de fato é o consumidor final, que arca com o ônus do imposto, uma vez que o tributo está embutido no preço do bem ou serviço. No contexto da reforma tributária não há uma distinção clara, uma vez que as instituições sem fins lucrativos podem ser tributadas quando adquirem bens ou serviços em contrariedade ao artigo 150 VI, c. O artigo 9º pode impactar e muito nas entidades, visto que na aquisição de bens acabará incidindo o IBS e a CBS.
Portanto, de acordo com a LC 214/2025 a imunidade estaria limitada ao fornecimento de bens e serviços, e não às aquisições, o que pode gerar novos desafios para essas entidades.
A reforma tributária também trouxe inovações quanto a não incidência do ITCMD sobre doações destinadas a organizações sem fins lucrativos que possuam finalidade de relevância social, incluindo entidades assistenciais, beneficentes, religiosas e institutos científicos, desde que seja observado seus objetivos sociais, conforme critérios que serão estabelecidos em lei complementar, que está em tramitação no Senado Federal (Projeto de Lei Complementar n° 108, de 2024), com expectativas que seja sancionada ainda em 2025.
Reflexões Finais
A reforma tributária promovida pela EC 132/23 e pela LC 214/25 representa um marco significativo na reestruturação do sistema fiscal brasileiro, inclusive no que tange ao impacto sobre o terceiro setor. As novas regras introduzidas por essas normativas têm o potencial de transformar a dinâmica tributária das organizações sem fins lucrativos, particularmente aquelas atuantes nas áreas da saúde e assistência social, áreas essenciais para o bem-estar da população brasileira.
Contudo, a implementação dessas mudanças exige atenção, especialmente no que se refere às especificidades do setor, que muitas vezes dependem de certificações para garantir a continuidade dos serviços prestados à sociedade.
Quanto às entidades beneficentes de assistência social, as entidades precisam continuar a ser monitoradas, para que a imunidade não seja comprometida por eventuais dificuldades de adaptação ao novo sistema. A reforma também destaca a importância de garantir a continuidade da imunidade, que é crucial para o financiamento de serviços essenciais, como hospitais filantrópicos, clínicas de reabilitação e outras instituições que atendem populações vulneráveis.
Em face das mudanças trazidas pela EC 132/23 e LC 214/25, é fundamental que as organizações do terceiro setor no Brasil estejam preparadas para os desafios e oportunidades, mantendo a relevância e eficácia de suas ações nas áreas de saúde, educação e assistência social.
Para a boa implementação dessa nova sistemática, principalmente na fase de transição, é imprescindível o acompanhamento contínuo das mudanças e a atuação dos profissionais das áreas financeira, contábil, jurídica, e entidades de classe e para garantir a plena compreensão e aplicação das novas normativas voltadas para o setor.
[1] Devido as dificuldades geográficas e logísticas de Manaus, a EC 132/23 e a LC 214/2025 foram sancionadas com garantias fiscais para a Zona Franca. Devido a dificuldade de acesso terrestre nesta região, o custo com transportes que variam de acordo com aa sazonalidade da região (secas e alagamento de rios/alto custo em transporte aéreo), fizeram imprescindíveis incentivos fiscais na tentativa de reequilibrar a desigualdade econômica e social ao resto do país. A reforma tributária assegurou a manutenção da ZFM, e especificamente ao IPI, sendo como regra geral a alíquotas reduzidas a zero, incluindo as alíquotas da TIPI que tem um percentual abaixo de 6,5, desde que observados critérios previstos na legislação.
[2] RE 608.872, Tema 342 da RG, de relatoria do Min. Dias Toffoli, Pleno, DJe 27.9.2017