Por Thiago Vieira de Almeida Prado, Lara Fontes Lyra, Luisa Carolina Aki Toyoshima e Fernando Viscki Gonçalves
O Código de Processo Civil (“CPC”) determina as regras sobre competência judicial que deverão ser observadas pelo autor quando do ajuizamento de uma ação. Apesar disso, a mesma norma autoriza a eleição de foro judicial pelas partes para dirimir questões relacionadas a um negócio jurídico determinado. Dessa forma, permite-se que, durante o exercício de sua autonomia em contratar, as partes afastem a aplicação das regras processuais gerais sobre competência e modifiquem-na em razão de seu valor e território. É o que se entende por “cláusula de eleição de foro”.
A recém publicada Lei n. 14.879/2024 alterou o artigo 63 do CPC ao estabelecer novos requisitos de eficácia para a cláusula de eleição de foro, prevendo que o foro, que antes era livremente eleito pelas partes, deverá passar a guardar pertinência com o domicílio ou residência de uma das partes ou com o local da obrigação, salvo em caso de contratos consumeristas quando a escolha for favorável ao consumidor. Reconhecida a abusividade da cláusula, o magistrado poderá declinar sua competência de ofício, sem que sua incompetência seja alegada pela ré.
Destaca-se que o reconhecimento da abusividade pelo magistrado já era possível, conforme previsão do art. 63, §3º, do CPC, dispositivo este que era objeto de frequente aplicação judicial, sendo a cláusula de eleição de foro considerada abusiva quando inserida em contratos de consumo, por exemplo[1]. A lei, contudo, inova ao estabelecer requisitos objetivos para apreciação do magistrado.
Antes da publicação da Lei n. 14.879/2024, a eficácia desta cláusula estava condicionada somente a sua indicação por escrito e à sua aplicabilidade a um negócio jurídico determinado. Assim, a eleição de foro entre as partes não poderia ser presumida quando da ausência de dispositivo correspondente, bem como não seria eficaz em caso de indicação de negócios jurídicos de forma ampla e inespecífica.
Com isso, era bastante comum que as partes elegessem foros que não possuíam relação direta ou indireta com o objeto contratado, nem com elas próprias, mas que, por algum motivo, compreendessem que seriam mais aptos ao julgamento de eventual litígio.
Esta prática vinha sendo ainda mais comum em contratos empresariais, considerando que fora das capitais é comum que as comarcas sejam formadas por varas – às vezes, únicas – que cumulam competências em matérias interdisciplinares, tais como, de direito empresarial, civil, criminal etc., o que, em tese, poderia resultar em decisões menos técnicas. Por este motivo, tribunais sediados nas capitais ou que possuam varas especializadas em direito empresarial se tornaram os preferidos pelas partes.

De acordo com o Deputado Federal Rafael Prudente, autor do Projeto de Lei n. 1.802/2023, que originou a nova norma, a escolha “aleatória” de foro pelas partes deve ser compreendida como prática abusiva, pois viola os princípios da boa-fé objetiva e do juiz natural e tem gerado sobrecarga de certas varas e tribunais. Para ele, a sobrecarga de processos poderia prejudicar os moradores locais que, ao se socorrer ao Poder Judiciário para solucionar suas questões, seriam deparados com uma prestação jurisdicional ineficiente.
O político pontua o exemplo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT que, segundo ele, por seus processos serem mais céleres que a média, vem recebendo uma grande quantidade de ações oriundas de contratos, cujos litígios não possuem vínculo algum com o TJDFT.
Em que pese a argumentação acima possa fazer sentido do ponto de vista institucional, entendemos que, por outro lado, a nova regra afetará principalmente causas que envolvam litígios empresariais complexos, que naturalmente exigem do magistrado um conhecimento mais aprofundado e detido sobre a matéria empresarial, familiaridade a qual poderá variar a depender da comarca e da vara em questão.
É possível também que, diante da regionalização das demandas, comarcas e varas com menor estrutura fiquem igualmente sobrecarregadas, já que receberão um maior volume de causas oriundas de contratos que, antes da proibição, seriam direcionados aos foros e às comarcas com maior estrutura e varas especializadas.
Não se pode deixar de mencionar que a regra, além de restringir o princípio da autonomia da vontade das partes de contratar, poderá prejudicar, de certa forma, o acesso à justiça, concretizado mediante o direito a elas conferido de obter, em prazo razoável, a solução integral do mérito, inclusive da atividade satisfativa. É que a “aleatoriedade” sugerida pela Lei, decorrente do princípio do juiz natural, no fundo, reflete a razoável busca pelas partes de uma prestação jurisdicional mais eficiente.
A norma em comento foi publicada em 4 de junho de 2024, devendo inequivocamente passar a ser observada na celebração de novos contratos e ajuizamento de ações judiciais a eles correspondentes. É válido, contudo, observar os precedentes abaixo do Tribunal de Justiça de São Paulo[2], que vêm aplicando a norma em ações em curso que discutem a eficácia de cláusulas de eleição de foro em contratos celebrados antes da data de publicação da Lei 14.879/2024, o que poderá gerar discussões futuras sobre o tema, importante de serem acompanhadas.
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[1] Agravo de instrumento. Instituição educacional. Cobrança. Ajuizamento no foro de eleição diverso do foro de domicílio da ré. Declínio de competência com determinação de remessa dos autos a uma das Varas Cíveis da Comarca de Casa Branca. Insurgência insubsistente. Evidenciada abusividade da cláusula de eleição de foro, por implicar embaraços à condução da defesa, a teor do art. 63, § 3.º e 101, ambos do Código de Defesa do Consumidor. RECURSO DESPROVIDO. (TJSP; Agravo de Instrumento 2045941-02.2024.8.26.0000; Relator (a): L. G. Costa Wagner; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro de São João da Boa Vista – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/06/2024; Data de Registro: 29/06/2024)
[2] AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA. INSURGÊNCIA EM FACE DA DECISÃO QUE DECLINOU DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL DE OFÍCIO, COM DETERMINAÇÃO DE REMESSA DOS AUTOS PARA A COMARCA DE SÃO VICENTE/SP. IMPOSSIBILIDADE. Elementos dos autos que não permitem o reconhecimento de qualquer abuso na cláusula eletiva. Validade da cláusula de eleição de foro. Súmula 335 do STF. Recurso provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2082325-61.2024.8.26.0000; Relator (a): Miguel Petroni Neto; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos – 8ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 04/07/2024; Data de Registro: 04/07/2024)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL. ELEIÇÃO DE FORO. Decisão que rejeitou a preliminar de incompetência territorial, com fundamento nas normas de proteção ao consumidor, afastando o foro de eleição. Pretensão de reforma. CABIMENTO: Inaplicabilidade das normas de proteção do consumidor. Operação que tem o objetivo de aumentar a atividade negocial da empresa, o que lhe retira a qualidade de destinatária final. Validade da cláusula de eleição de foro – Art. 63, caput e § 1º do CPC. Foro de eleição que coincide com o domicílio do agravante e com o local do cumprimento da obrigação, requisitos adicionados pela Lei 14.879/2024. Aplicação da Súmula 335 do STF. Incompetência territorial reconhecida. Decisão reformada. RECURSO PROVIDO. (TJSP; Agravo de Instrumento 2093910-13.2024.8.26.0000; Relator (a): Israel Góes dos Anjos; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guarulhos – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/06/2024; Data de Registro: 21/06/2024).