Por Brenda Rodrigues Feijó Quintela
O Brasil é um país regido pela jurisdição de Civil Law, que se trata de um modelo cujo principal alicerce, conforme inicialmente concebido, são os enunciados normativos elaborados por órgãos legislativos próprios – o que teoricamente abriria pouca margem a qualquer interpretação – e que não priorizaria a criação e utilização de precedentes, uma vez que não seria essa a essência do sistema jurisdicional adotado.
Ocorre que, com o passar dos anos, houve significativas transformações não somente na sociedade brasileira, mas também na sistemática de organização do Direito no Brasil. Assim, o sistema de Civil Law foi se transformando e adaptando-se à realidade social, de modo que essa transformação e evolução do sistema é de grande importância para que se entenda a verdadeira essência dos precedentes judiciais no sistema jurídico atual e como se deu sua gradativa relevância.
Tal evolução leva a um caminho cada vez mais proativo não só dos juízes, mas também das cortes brasileiras. As cortes que anteriormente se preocupavam exclusivamente com a subsunção do fato à norma, passam a atuar também com relação ao futuro, ou seja, a manutenção da segurança jurídica. Tanto é verdade que o Código de Processo Civil de 2015 prevê em seu art. 926 que tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
A partir dessa nova noção, os precedentes ganham força e importância para que a segurança jurídica e unidade do direito sejam alcançadas e devam, por conseguinte, ser respeitados.
Tais precedentes podem apresentar natureza meramente persuasiva, sem obrigatoriedade da aplicação da norma pelos outros órgãos do judiciário, ou podem apresentar, ainda, natureza vinculante, sendo sua aplicação de observância obrigatória aos novos casos postos sob exame.
A principal controvérsia, contudo, se refere aos casos anteriormente julgados, em que não caiba mais recurso, e se os entendimentos neles proferidos poderiam vir a ser alterados em decorrência de superveniência de entendimento posterior de observância obrigatória, levando-se em consideração a segurança jurídica do contribuinte.
Trata-se a coisa julgada de conceito que nasce de uma necessidade de se obstar uma perpetuação dos litígios, de modo que as situações conflituosas postas sob análise do judiciário cheguem, em algum momento, ao fim. Não se pode aceitar que alguma demanda perdure por tempo indeterminado, uma vez que, caso ocorresse, além do congestionamento do próprio sistema, ficaria o cidadão de tal maneira vulnerável que nunca conseguiria ter a certeza plena de seu direito. O Código de Processo Civil, com relação ao tema, traz no art. 502 que: “Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.
Aqui, a ideia que se passa é a da certeza do direito, ou seja, a de que a situação conflituosa posta sob análise foi devidamente resolvida e que é o entendimento exarado o mais adequado a ela, sem que haja posteriores alterações.
Trata-se, portanto, de instituto de grande importância no sistema jurídico, que remete ao verdadeiro mecanismo que se propõe a estabilizar as relações sociais, mantendo-se a segurança jurídica. Tamanha é sua importância que a própria Constituição Federal traz a disposição de que as leis não podem retroagir, alcançando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.[1]
Diante do exposto, mostra-se claro que sua relativização deve ser entendida com a devida cautela.
Os limites da coisa julgada em matéria tributária estão sendo discutidos pelo Supremo Tribunal Federal, sendo atualmente um dos temas tributários mais relevantes em pauta no tribunal. A discussão ocorre por meio de dois recursos extraordinários, RE nº 955.227 e RE nº 949.297, ambos com repercussão geral reconhecida (temas 885 e 881).
Embora versem sobre casos concretos distintos, os Recursos mencionados convergem ao tratarem do limite a ser estabelecido a coisa julgada no que se refere aos tributos pagos de forma continuada.
No RE nº 955.227, o voto do Ministro Roberto Barroso (relator) negou provimento ao recurso extraordinário da União, reconhecendo, porém, a constitucionalidade da interrupção dos efeitos futuros da coisa julgada em relações jurídicas tributárias de trato sucessivo quando a Corte se manifestar em sentido contrário em recurso extraordinário com repercussão geral, e propôs a seguinte tese:
“1; As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena, ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”
Propôs, ainda, com base no art. 27 da Lei nº 9.868/1999, que a tese firmada venha a ser aplicada, a partir da publicação da ata de julgamento do acórdão, considerando o período de anterioridade nonagesimal, nos casos de restabelecimento de incidência de contribuições sociais, e de anterioridade anual e noventena, para o restabelecimento da incidência das demais espécies tributárias, observadas as exceções constitucionais, no que foi acompanhado pelos Ministros Rosa Weber e Dias Toffoli.
O voto do Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, deu provimento ao recurso extraordinário para assentar que, em se tratando de relação jurídica de trato sucessivo, a superveniência de interpretação do Plenário do STF, em sede de controle concentrado ou difuso de constitucionalidade, divergente com a exegese transitada em julgado em demanda individual ou coletiva, faz cessar a ultratividade da eficácia preclusiva da coisa julgada formal e material em relação aos efeitos futuros de atos pretéritos, além dos atos futuros.
No que se refere ao RE nº 949.297, o Relator, Ministro Edson Fachin conheceu o recurso extraordinário a que se deu provimento para reformar o acórdão recorrido, e propôs a seguinte tese de repercussão geral:
“A eficácia temporal de coisa julgada material derivada de relação tributária de trato continuado possui condição resolutiva que se implementa com a publicação de ata de ulterior julgamento realizado em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, quando os comandos decisionais sejam opostos, observadas as regras constitucionais da irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, de acordo com a espécie tributária em questão”
O voto acima mencionado foi acompanhado pela Ministra Rosa Weber e pelos Ministros Roberto Barroso e Dias Toffoli, muito embora tenham os dois últimos proposto ressalvas com relação a tese de repercussão geral. O Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, se posicionou de maneira semelhante ao seu posicionamento no RE nº 955.227.
Ocorre que o Ministro Alexandre de Moraes pediu vista em ambos os recursos extraordinários, suspendendo seu julgamento. Assim, muito embora antes da suspensão os relatores dos recursos tenham proferido voto no sentido de que um contribuinte que obteve decisão judicial favorável com trânsito em julgado perderia seu direito diante de nova decisão do Supremo Tribunal Federal que considerasse a cobrança constitucional, não há data para o julgamento voltar a pauta.
Dessa forma, considerando que o Direito não depende exclusivamente do legislador, mas também do Judiciário, e os precedentes judiciais ocupam no desempenho da busca da adequada interpretação da Ciência Jurídica uma posição de extrema importância – uma vez que compõem o ordenamento jurídico e se propõem a garantir a segurança jurídica – temos que a questão ora analisada é imensamente relevante ao contribuinte, uma vez que pode gerar enormes impactos tributários a depender da interpretação adotada pela Suprema Corte.
[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;